quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O Capitalismo em convulsão

Repasso, na íntegra, as palavras de John Plender, colunista do “Financial Times” e executivo-chefe da “Quintain”, publicadas em 24/09/08


"O capitalismo em convulsão: ativos tóxicos viajam em direção a contabilização pública".


No espaço de apenas duas tumultuadas semanas, o panorama das finanças globais mudou drasticamente. A administração Bush montou um resgate multibilionário, para salvamento do sistema financeiro, que vai infligir danos severos ao modelo norte-americano de livre capitalismo de mercado.

Pesados custos também serão infligidos ao contribuinte americano, que irão subsidiar Wall Street – e várias instituições financeiras ao redor do mundo – em um resgate de dimensão sem precedentes.

A seqüência de eventos que levaram a esta extraordinária socialização das finanças começou com a nacionalização, de fato, da Fannie Mae e Freddie Mac, os falidos financiadores de hipotecas patrocinados pelo governo, que estão no cerne do sistema de financiamento habitacional dos EUA. Seguiu-se um forte aumento no custo do seguro contra inadimplência na economia mais poderosa do mundo. Em algumas estimativas independentes, a resposta global à crise poderia levar a dívida pública dos EUA, ainda em patamares gerenciáveis, a um nível comparável ao de países altamente endividados, como Japão e Itália.

Preocupações com a solvência dos EUA são absurdas, de acordo com Charles Goodhart, da London School of Economics. Elas têm, todavia, vindo à tona, juntamente com uma preocupação acadêmica acerca do papel do dólar como moeda global de reserva.

Depois veio a absorção da Merrill Lynch pelo Bank of America e uma corajosa decisão por Hank Paulson, secretário do Tesouro americano, de permitir o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento dos EUA, de ir à lona. Este movimento contrastou com o resgate orquestrado do menor Bear Stearns pelo JPMorgan Chase, no início deste ano.

O desaparecimento desses dois gigantes de Wall Street suscitou dúvidas sobre a perenidade do modelo independente para bancos de investimento. As ações dos dois sobreviventes do mercado de securitização, Morgan Stanley e Goldman Sachs, foram rapidamente depredadas pelos especuladores. No Reino Unido, sabe-se que especuladores empurraram o HBOS, o maior credor hipotecário do país, para um casamento forçado com a Lloyds TSB.

Ainda mais surpreendente foi a notícia de que o Federal Reserve adiantou US$85 bi dos contribuintes para a AIG, a maior seguradora privada. Graças ao seu papel no mercado mundial do seguro de crédito, a AIG era tão interligada com outras instituições financeiras que sua falência teria sido catastrófica para todo o sistema.

No entanto, apesar de uma recuperação inicial, a crônica falta de confiança, que tem dominado o sistema bancário desde agosto do ano passado, piorou após esses movimentos. Na quarta-feira, a taxa de juro de um mês dos Treasury Bills tornou-se negativa, passando a surpreendente mensagem de que os investidores preferem perder dinheiro em papéis do governo, onde o reembolso é certo, do que investir em fundos do mercado monetário. O ponto de clímax tinha sido atingido, no qual ninguém confia em nenhum outro ativo que não sejam os governamentais.
Em tais circunstâncias, a experiência ensina que os bancos centrais têm de emprestar livremente. No evento, o Federal Reserve injetou US$ 180 bi nos mercados, enquanto os demais presidentes de bancos centrais diziam que iriam adotar medidas coordenadas para aliviar os mercados de curto prazo de dólar.
Para completar a semana, Paulson iniciou debates com líderes políticos para criar um mecanismo, patrocinado pelo governo, com o objetivo de assumir os ativos tóxicos criados pela bolha, causando momentânea alta no mercado acionário.

O paradoxo, neste caso extraordinário, é como uma iliquidez tão extrema pode existir em um mundo inundado com o excesso de poupança da Ásia e das petro-economias. A Rússia ilustra o ponto. Graças a abundantes fluxos de petróleo, obteve elevado crescimento econômico, a terceira maior reserva cambial do mundo e baixa dívida do setor público. Entretanto, os preços das ações no mercado de capitais russo estão desabando e a confiança no sistema financeiro erodiu a tal ponto, que os bancos estão com escassez de fundos e ameaçados de falência.

Isto é o que ocorre quando um superalavancado sistema financeiro global reverte sua tendência. A contração de crédito está sendo forçada em todo o mundo após a maior bolha de crédito na história ter estourado. David Roche, do centro de pesquisas “Independent Strategy”, traduz isto como uma "mudança tectônica da alavancagem para a parcimônia, como modo de financiamento do crescimento, e a concomitante drástica redução dos desequilíbrios globais, tais como o déficit em conta corrente dos EUA".

A realidade é que o sistema financeiro tem funcionado como se fosse instrumento extrapatrimonial do governo. Empresas do setor privado e banqueiros obtiveram enormes lucros na bolha. O apetite de risco foi reforçado por resgates anteriores e, no caso da Fannie e Freddie, pela garantia implícita do governo. Por isso, os preços no mercado ainda não refletem o custo potencial, para o sistema, de seu próprio colapso.

Esta incapacidade de lidar com as externalidades ficou mais uma vez evidente nos mercados, ao longo das últimas duas semanas, quando especuladores se envolveram nas estratégias de vendas a curto-prazo contra a AIG e os bancos de investimento, nos EUA, e HBOS, no Reino Unido. Isto põe em risco o sistema financeiro, porque as agências de “rating” respondem às quedas das cotações rebaixando as classificações de risco de crédito, prejudicando ainda mais a capacidade dos agentes de financiar seus negócios combalidos.

Mais uma vez, os imóveis têm sido o cerne do descalabro financeiro, apesar das afirmações dos banqueiros centrais de que uma queda geral dos preços dos bens imobiliários ser impossível. No entanto, a particularidade desta vez está no fato de as cotações dos imóveis terem sido envolvidas pelos movimentos dos complexos produtos financeiros, que poucos compreendiam.
Quando os investidores saem de suas áreas de competência, problemas aparecem. Walter Bagehot, o economista do séc. XIX que definiu as regras para a gestão de crises financeiras pelos bancos centrais, em seu livro “Lombard Street”, dizia: "O senso comum ensina que especuladores não deveriam mexer com o lúpulo das cervejas, ou banqueiros com óleos medicinais; ferrovias não deveriam ser bancadas por senhoras solteiras, ou os canais por clérigos (...) Em nome do bom senso, é necessário que haja bom senso".

A diferença na década atual é que tanto os executivos dos bancos, como seus conselhos executivos, não conseguiram compreender a extensão total destes produtos bancários lastreados em hipotecas securitizadas, assim como não entenderam bancos centrais, autoridades reguladoras e agências de “rating”.

Nos itens extrapatrimoniais do mundo de Alice no País das Maravilhas, a mais absurda característica foi o sistema de recompensas, que concedeu enormes benefícios para aqueles que injetaram no sistema ativos tóxicos hipotecários e não permitiu que grande parte do dinheiro pudesse ser resgatada quando os resultados ficaram abaixo dos esperados. Quase tão absurdo, também, foi o grau de alavancagem permitido aos bancos de investimento.

Como Michael Lewitt, um agente de investimentos da Flórida, diz: "Permitir os investimentos dos bancos serem alavancados na proporção de 30 pra 1 é o mesmo que jogar roleta russa com cinco dos seis câmaras da arma carregadas. Se forem acrescentados os passivos extrapatrimoniais, você está simplesmente carregando a sexta câmara, e puxando o gatilho".
Então, que estágio a crise atual atingiu? Bagehot cita a descrição do banqueiro Overstone Lord's sobre o progresso de um ciclo instável: "quietude, melhora, confiança, prosperidade, emoção, ‘overtrading’ , CONVULSÃO [ênfase de Bagehot], pressão, estagnação, terminando novamente em quietude".

Nas duas últimas semanas, estamos assistindo à convulsão. Ainda que seja possível evitar a estagnação, pois as autoridades estão seguindo as prescrições de Hyman Minsky, o economista cujo trabalho, Stabilizing An Unstable Economy, melhor explicou a dinâmica desta crise.
Minsky vê um ativismo fiscal do governo, junto com empréstimos de última instância dos bancos centrais, como a maneira moderna de lidar com dificuldades financeiras. Isso está ocorrendo agora. Com efeito, o governo americano está replicando o que ocorreu no sistema bancário privado na crise anterior, quando as instituições foram obrigadas a retomar as entidades que haviam criado, como instrumentos e mecanismos de investimento estruturado, de volta aos seus balanços financeiros, quando os financiamentos secaram.

Tendo implicitamente garantidos Fannie e Freddie, e sustentado as operações de banqueiros irresponsáveis na AIG e outros lugares, o governo americano está colocando instituições falidas de volta ao balanço, só que desta vez é o balanço do setor público, por meio da nacionalização. Logo, a proposta de Paulson para lidar com os ativos tóxicos tem o real significado um ponto de inflexão.

Qual será a paisagem do sistema bancário após esta saga? Depende em muito da resposta regulatória. No mínimo, os requisitos de capital serão mais restritivos, o que pode significar um sistema bancário revertendo para um ponto de menor de risco de atuação, na função utilidade geral. Mas, uma questão mais importante permanece sem resposta, que é a que diz respeito à independência dos bancos centrais.

Se os bancos centrais tiverem de ser recapitalizados, como parece provável de acontecer neste cenário, o sistema político pode querer cobrar o preço de diminuir sua independência operacional, o que terá consequências devastadoras. Pois um ponto central da tese de Minsky é de que o ativismo fiscal e os empréstimos de última instância causam inevitavelmente forte pressão inflacionária. Isto, juntamente com um aumento dos encargos sobre as futuras gerações de contribuintes, poderá ser o custo das últimas duas semanas de frenéticos esforços para repelir a deflação dos ativos hipotecários e manter a aparência de solidez do modelo anglo-americano de capitalismo.

2 comentários:

Cynthia Falcão disse...

Teria o link do artigo original, em inglês?

Rodrigo Palhares disse...

Oi Cynthia, infelizmente nao tenho mais acesso ao original em inglês. Sei que está disponível no FT, mas somente para assinantes. O nome do artigo é "Capitalism in convulsion: Toxic assets head towards the public balance sheet". Caso você tenha acesso, segue o link: https://www.ft.com/search?q=John%20Plender&page=28.
Outra alternativa seria atraves do researchgate.net. Você precisa criar um cadastro lá para ter full access. Segue o link, caso se interesseÇ https://www.researchgate.net/publication/265627647_Capitalism_in_convulsion_Toxic_assets_head_towards_the_public_balance_sheet

Espero ter ajudado.

Rodrigo