terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Até debaixo d'água...

Alguns momentos são tão especiais que não se expressam com palavras! Mas são guardados junto a todos os outros em nossas mentes. A receita completa, os ingredientes de origem interna e externa, tais como os sentimentos, as imagens, os cheiros, os sons, as sensações, as vibrações e as associações, todos misturados ao conjunto de experiências que acumulamos em vida, vão formando a todo instante uma nova receita, única e exclusiva, o que cada um de nós se torna. E essa gaveta das recordações vive aberta, transbordando, turbulenta, deixando à mostra as lembranças e as referências, com a heterogeneidade que o caminho da vida nos impõe.

Certamente vivemos muitos momentos especiais ultimamente que tornaram nossas receitas mais saborosas. O olhos nos olhos, livre, transparente e inteiro; a sintonia que se impõe até mesmo nas divergências; o respeito ao desrespeito às diferenças; o companheirismo por puro desejo e sobretudo o compromisso mútuo com o desejo de cada um...

Quem consegue experimentar o gosto único de um simples caminhar de mãos dadas com a mulher amada, quem vê o coração bater mais forte porque sente o amor no olhar de quem se ama, quem se completa com o sorriso sincero da companheira, quem se conforta e se fortalece com seu abraço, quem divide o sofrimento das dores com a mesma disposição que compartilha os sucessos, pode finalmente transmitir ao mundo que a vida vale muito à pena, que ao resultado de uma busca determinada e obstinada, o mais provável é o encontro. E é nesse encontro que se desencontram as palavras, no abismo que separa a plenitude do sentimento da limitação da expressão.

É Como Dizia o Poeta:

"Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá prá quem se deu
Prá quem amou, prá quem chorou, prá quem sofreu,

Quem nunca curtiu uma paixão,
Nunca vai ter nada, não

Ai de quem não rasga o coração,
Esse não vai ter perdão."


E Maceió, linda e aconchegante, cujas verdes águas de seu mar lembram os olhos de minha bela esposa, foi o fundo musical perfeito.


quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Os frutos e as sementes – Rodrigo Palhares

Nascido em berço humilde, Ademar dividiu o colo da mãe, Dona Matilde, com outros nove irmãos. Eram tantos filhos que Dona Matilde dedicou todas as suas energias ao lar. Estudo praticamente nenhum, aprendeu foi com a vida mesmo. A herança que teve dos pais foi a tradição de que a família era seu maior tesouro e fez dessa fortuna a sua filosofia de vida. Ao seu lado, Seu Pedro, um homem franzino, de semblante firme e de poucas palavras, mas muito bem escolhidas. Certa vez, um de seus filhos reclamava muito da vida e Seu Pedro lá, calado, se esquivava das lamúrias. Era o emprego ruim, o salário baixo, a violência, a miséria, a comida, o tempo, enfim, tudo desagradava. Contava um caso de um colega que foi assaltado, lembrava do motorista do ônibus que dava arranques na direção, falava dos latidos do cachorro do vizinho no meio da noite, e assim ia se afogando nas queixas. E Seu Pedro lá, quietinho, enrolando seu cigarro de palha, num de seus raros momentos de descanso. Mas veio a deixa e seu sossego foi interrompido por uma pergunta:

- Essa vida é difícil demais, não é Pai?

Os dedos calejados do Seu Pedro pararam de trabalhar no fumo. Com firmeza, fisgou o filho com os olhos. Por alguns segundos, todos na casa se calaram. Parecia que o mundo tinha parado para finalmente Seu Pedro se pronunciar. Este era um daqueles momentos em que um segundo durava uma eternidade. Seu olhar por si só já dizia tudo, talvez nem fossem necessárias palavras, mas a provocação foi tamanha que Seu Pedro não parou no caminho, falou baixo mas em tom de sabedoria:

- A vida só é difícil para os fracos...

E assim, cada um ao seu jeito, Dona Matilde e Seu Pedro foram batalhando e construindo a história, disseminando seus valores a cada gesto.

Ademar, desde pequeno era um garoto observador. Inteligente e astuto, tinha o sangue quente correndo nas veias. Questionava com veemência as diferenças e as injustiças. Vivia dizendo que ia ser rico, que ia ganhar muito dinheiro e ter tudo que quisesse. Via os meninos ricos com roupas bacanas, observava os carros, as casas, os bens, o dinheiro... Via longe, e doía, olhava por perto, e sofria. Foi prestando atenção à sua volta, viu os cabelos do Seu Pedro ficarem brancos, acompanhou Dona Matilde caminhar com dificuldade para subir o morro. De repente ela mal dava conta de esticar o lençol no varal. A cabeça foi ficando ruim, foi esquecendo dos nomes, das coisas, das tarefas... E chegou o dia em que ela nem lembrava mais quem era ela, muito menos quem era Ademar. Em pouco tempo não se levantou mais da cama. Ademar também chorou a morte de seu irmão caçula que não teve atendimento médico, testemunhou sua irmã casar com um vagabundo e aparecer algumas vezes aos prantos em casa no meio da noite, exibindo as marcas da correia do marido. Foi confrontando as desgraças ao seu lado com a atrativa e cobiçada beleza da riqueza que estava fora do seu alcance. E foi ficando grilado, aturdido, alimentando um sentimento de revolta, tentando encontrar uma forma de mudar tudo aquilo.

Era um dia atrás do outro e não havia o menor prenuncio de uma vida melhor. Com uma bomba atrás da outra, veio a gota d’água. Seu Pedro fora mandado embora do trabalho. Já não agüentava o tranco da obra, já não tinha mais forças para competir com o vigor dos mais novos. Em casa, um mês depois, desesperado e nervoso, cansado de procurar trabalho, Ademar presenciou a única queixa de Seu Pedro durante toda sua vida. Foi uma forte dor no peito, Seu Pedro tentou segurar o grito, escolher as palavras, mas era tarde demais, não foi capaz de controlar. Se curvou aos poucos, tentou se apoiar no encosto da cadeira e, caindo lentamente, foi se ajeitando pelo chão, no centro da sala, bem onde seu corpo seria velado algumas horas mais tarde.

Lá estavam todos reunidos, menos Dona Matilde. Ficava no quarto, deitada, morta-viva. Ademar ia de um lado para o outro, ouvia os pingos da chuva nas telhas, escutava seus próprios passos, os choros, os lamentos... A casa estava cinza, o céu carregado. Não havia mais a fumaça do cigarro de palha do pai, apenas sentia o cheiro mórbido das rosas... Estava acuado, caminhava para um lado e esbarrava no que restara do pai, se virava e avistava no leito a mãe. No fundo se sentia testemunhando a própria morte, cruel, dolorosa e lenta. O que estava acontecendo? Onde estava aquele olhar da autoridade? Precisava agora daquelas poucas palavras que tocavam fundo em sua alma e alinhavam sua mente. Por onde andava o disputado colo de Dona Matilde? Não havia mais o beijo de boa noite, a mesa posta no café da manhã, a marmita cuidadosamente preparada para cultivar a lembrança do lar e da família no corrido intervalo do batente. Era um turbilhão de ausências que angustiavam Ademar. Ele, que achava que não tinha nada, que sofria porque queria ter dinheiro, morar numa casa grande e ser patrão, via os esforços de Seu Pedro e Dona Matilde irem por terra. De que adiantava tudo aquilo se quanto mais lutavam, menos tinham?

A vida deu forças para Ademar correr atrás do dinheiro. Não queria mais sentir tanta dor, não estava disposto se apegar a mais ninguém. Determinado, foi vendendo cada segundo de seu tempo, andava cinco quilômetros a pé para ir para o trabalho e economizar a passagem, comia pouco, não saia, não fazia nada além de trabalhar. Perdeu o casamento do irmão, o batizado dos sobrinhos, se ausentou nas festas de natal porque fazia um bico de porteiro naquelas horas em que ninguém se dispunha a executar tais serviços. E sozinho foi caminhando. Foi promovido, mudou de emprego, passou a ganhar bem. Comprou um terreno, construiu sua casa, aprendeu a dirigir para guiar seu carro novo. E foi guardando dinheiro. Quanto mais tinha, mais queria. Já conhecia bem os investimentos, ficou interessado, estudou a fundo o assunto, afinal, a grana já era muita e ele, mais que qualquer pessoa, sabia o preço que estava pagando, os riscos que estava correndo.

Um dia sua irmã ficou sozinha, o marido havia sido preso. Sem emprego, sem dinheiro e com quatro filhos pequenos, se ajoelhou aos seus pés para tentar suprir a fome dos meninos. Outro irmão ficou inválido num acidente doméstico, caiu do telhado quando reformava o barraco. Sem recurso e precisando de remédios, também se curvou diante de Ademar. E tantos outros que cresceram juntos, que viveram a infância de braços dados imploraram por ajuda e convidaram Ademar a participar novamente de suas vidas.

Uma antiga paixão da adolescência, a vizinha Rosa, por sorte ou por azar, acabou reencontrando Ademar. Conversaram, trocaram alguns carinhos, andaram de mãos dadas, relembraram as brincadeiras dos velhos tempos. O coração de Ademar balançou. Palpitava a ponto dele sentir escapar por entre os dedos todos os planos que por anos o mantiveram firme. Rosa custava muito caro, o deixava despido diante de si mesmo, o tornava vulnerável, frágil, dependente...

Foi difícil, mas Ademar enterrou sua paixão junto com boa parte de sua história. E foi em frente, contando dinheiro, acumulando riqueza. Agora ele podia viajar, podia ter o que quisesse, mas Ademar não queria gastar sua fortuna. Estava envolvido com tanto trabalho, guardando tudo que podia. Foram anos e anos de empenho, recebendo medalhas e honrarias pela dedicação à empresa, vendo as atendentes do banco sorrirem, limpando os pés no tapete vermelho que as sanguessugas esticavam para sua carteira.

O tempo passava muito rápido e de repente lá estava Ademar fazendo sessenta anos. Não viu sua barriga crescer, os cabelos branquearem, a pele enrugar. A voz já não era a mesma, os óculos se tornaram acessório indispensável. O cansaço estava vindo cada dia um pouco mais cedo, mais forte e intenso. Sua data fora brindada com uma bela tarde de sol. Era primavera, as ruas estavam cheias, coloridas, e Ademar finalmente se rendeu ao cansaço. Quis ver o mundo. Desceu do escritório e se pôs a caminhar calmamente pela praça, provavelmente fazendo um balanço de sua vida, como sempre fazia com suas finanças. Sentou-se em um banco e pôs-se a observar as pessoas. No banco ao lado um casal de namorados se abraçava. Sorriam, trocavam carícias, se beijavam... Mais adiante uma criança exibia, equilibrada em um par de patins, seus movimentos para seu pai. De longe era perceptível o orgulho que transbordava dele a cada manobra da menina. Ao fundo, um casal com três crianças jogavam comida para os patos. Perto deles, um carrinho de algodão doce perfumava a praça e arrancava dinheiro dos pais e brilho dos olhos dos filhos. Para todos os lados que Ademar olhava, as pessoas sorriam. Uns conversavam, outros brincavam, alguns se olhavam ou não faziam nada, mas todos pareciam felizes.

Um mal estar começou a tomar conta de Ademar. Não era bem o resultado que ele esperava encontrar em seu balanço. Queria se ver longe dali, voltar para o escritório, reencontrar a pilha de papéis que tinha deixado sobre sua mesa. Levantou rapidamente, tão ligeiro que ao começar a caminhar esbarrou num casal de velhinhos que por ali passeava, derrubando um pacote que estava na mão da senhora. Abaixou-se rapidamente, assustado e sem graça, para recolher os pertences da velhinha que se espalharam pelo chão. Tudo recolhido, Ademar finalmente se levantou e olhou nos olhos da senhora. Era Rosa, se desenterrando abruptamente de dentro de seu peito, em plena praça, de mãos dadas com o marido, passeando com os netos. E sorrindo!

O som das crianças brincando, do vento sob as árvores, dos carros na avenida, todos desapareceram diante daquele olhar. Ademar agora escutava o passado, ouvia os passos de Rosa indo embora e lembrava dos seus, de um lado para o outro na sala de sua casa. Ouvia os pingos da chuva no telhado, sentia novamente o cheiro mórbido das rosas... Tudo cinza, nebuloso, e lá estavam eles, Seu Pedro e Dona Matilde, no sacrifício de todos os dias, de mãos dadas. E Ademar ali, sozinho, perdido, perambulando pela praça, sem frutos para colher porque se alimentou das sementes.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Por que um blog? - Rodrigo Palhares

Plagiando os ditos da minha avó, eu andava mesmo procurando uma “sarna para coçar”. A vontade de escrever era antiga, sempre carreguei comigo o desejo de publicar alguma coisa, e até onde me dispus a me analisar, expressar desta forma sempre me agradou mais.

Não sou dessa geração que nasceu com um ipod num bolso e um notebook debaixo do braço, mas dou meus pulinhos, aprendo até rápido sobre os benefícios que a tecnologia proporciona. E parece que esse negócio de blog está querendo me contaminar também. Uniu o “útero ao agradável”! Não tenho o que escrever, mas quero escrever! Não é essa a razão da existência de um blog? Na era da individualidade e do egoísmo, alguém teve a brilhante idéia de abrir um espaço para documentar coisas que só o próprio autor perderia seu tempo lendo. Então estou entrando no clima, me auto-denominando blogueiro, iniciando a representação de um monólogo para um leitor só, que aprende e apreende em seu solitário desabafo, expresso pelas vozes de um teclado.

Então é isso, Petitesse vai reunir com brevidade um bocado de falta de assunto para todos, mas contemplará o que me der na telha escrever. Um pouquinho de tudo que ajudar a alimentar o meu ego, por mais idiota que essa idéia possa parecer, vai se aglutinar nesse endereço.

De qualquer forma, seja bem vindo!