quinta-feira, 3 de abril de 2008

O eu, o mundo e a violência

Quando Raul Seixas escreveu a música Eu também vou reclamar, onde pedia ao mundo para dar uma paradinha básica para ele descer, certamente não imaginava que chegaria um dia em que poderia se deparar com degradações de princípios e valores tais como as que temos sido submetidos atualmente.


Peter Sellers, em Muito Além do Jardim, fazia de seu mundo a tela da TV, e literalmente trocava os canais dela quando algo ficava complicado, ou fora de controle. Já pensou, se fosse fácil assim?



Talvez o Raul até tivesse sua bola de cristal, tanto que deu um jeito de parar o mundo dele antes que pudesse assistir a esta compulsiva enxurrada de registros sádicos e aberrações mórbidas a que temos sido forçados a assistir. O personagem de Peter Sellers, se existisse, provavelmente iria sofre de LER, Lesão por Esforços Repetitivos, de tanto apertar botões, ou, talvez aproveitasse a parada e descesse do mundo junto com o Raul.


Eu ainda acredito que ainda deve estar cheio de gente que luta; que trabalha; que corre atrás de uma vida melhor; que tenta cuidar de tudo e de todos, e que a cada dia fica mais amedrontada e aterrorizada, porque sofre bombardeios ininterruptos para ser lembrado de que as pessoas são, por natureza, perversas.


E será que são mesmo?


Acho que perversidade talvez não seja o termo exato, mas quem sabe elas são (ou estão) compulsivas e obcecadas? Juntando as palavras, fico com a idéia de que as pessoas estão cada vez mais obcecadas pelo que envolve a violência. Quanto mais perversa ela for, mais curiosas ficam; quanto mais ela aparece como uma ameaça, mais compulsivas elas se tornam, por quererem conhecer até onde vão os limites dessas atrocidades. Mas os perversos são os extremos, e via de regra, extremo nunca é regra.


A idéia de que a tal ameaça que o mundo aponta é muito mais de caráter interno, de que essa violência está no íntimo de cada um, não me abandona. Cada um que se veja com essas demonstrações que os extremos apontam da maneira que mais lhe convenha.


Mas existe aí um problema maior que a individualidade de cada um e que se relaciona com a máquina social atual. Como tudo que sobe, desce, e, da mesma forma, para cada ação existe uma reação, não há como desconsiderar que o sujeito participa do meio quando quer e quando não quer, porque o meio também participa dele. Cada um, sabe-se lá com quais proporções, mexe os pauzinhos do outro o tempo todo.


E no caso da relação com a violência, não tem sido muito fácil ficar por fora do que acontece. Mesmo que ela esteja distante do dia a dia, ela vende, ela rende, e portanto, ela está em voga.


Nem é preciso abrir um jornal, antes disso as notícias vêm correndo atrás das vítimas em busca de atenção, saltitantes aos nossos olhos, numa velocidade tão ‘tecnológica’ que em breve elas chegarão em Real Time, com manchetes do tipo “PERIGO! Estudante coreano acabou de lançar granada em sala de aula: Alunos têm cinco segundos para se proteger!”.


Mas em questão de conteúdo, parece haver um loop crônico e interminável. São “matérias” de destaque, imperdíveis, dessas que despertam a curiosidade para atrocidades dos famintos obsessivos. Monstruosidades como as de pais jogando filhos pelas janelas de edifícios no meio da madrugada; ou a morte bárbara do menino João Hélio, arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro durante um roubo enquanto um dos ladrões brincava com a cena, chamando-o de Judas; ou casos como o do garotinho de 9 anos em Aurilândia, no interior de Goiás, que foi pego a força por dois vaqueiros, chamado de bezerrinho e marcado a ferro, como gado, só por diversão.


Reparem bem, há uma indústria construindo avalanches dessa ordem, alimentada por um movimento ainda maior de curiosos, desejosos por formularem as tais ameaças internas pelo meio mais acessível, o externo.
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E dentro de cada um, lá na infância, já havia o interesse por estórias com emoções mais fortes. Entretanto, as estórias infantis foram tomando formatos mais exaltados na vida real nos últimos tempos. Cada uma dessas novelas reais que a imprensa investe de forma massacrante tem o mesmo tipo de composto que se vê em um desenho infantil, porém, há muito, uma pergunta não quer calar: o que acontece com o final feliz?


Vejamos as estórias e as histórias:


- Como nas mais belas animações da Disney, nas histórias acachapantes da vida real também há, sempre, uma criaturinha pura e indefesa, supostamente um símbolo da moral, da ética, da beleza e de tudo mais que se possa associar positivamente. De um lado, personagens como Branca de Neve ou chapeuzinho vermelho; de outro, vítimas como os meninos João Hélio e Isabella;


- Não poderia deixar de haver um vilão bem perverso. É aquele que tem a coragem de colocar o veneno na maçã, que expressa o mal de todas as formas, nos atos, na fisionomia, nas falas... O mais completo egoísta! Um verdadeiro “espírito de porco”, que bagunça o coreto, que agita a estória e também que marca a história, mas que se incumbe sempre de prender a atenção do público, alimentando a revolta e o desejo por justiça. Sem ele, não há o tempero emocional que faz a estória ser vista até o fim.


Nessa turma estão o capitão gancho, o lobo mau e um monte de bruxas. No outro pacote, o das histórias, encontramos recentemente os vaqueiros que ‘ferraram’ o menino goiano; a empresária Silvia Calabrese, de Goiânia, que tirava de humildes lares, com promessas encantadoras, criancinhas para serem torturadas, acorrentadas e escravizadas por anos e anos em sua casa; por fim, não poderíamos deixar de citar o pai da menina Isabella, de antemão julgado e condenado pela mídia, e que, independente do que ele fez ou deixou de fazer, ficou personalizado como o vilão do momento. Aliás, tão vilão que, menos de uma semana depois, a imprensa já enfatiza seu novo “furo” de reportagem. Outro pai já está preso, desta feita em Cariacica, no Espírito Santo. Seu arremesso não se configurou em homicídio, “apenas” tentativa. Por sorte, a altura era menor, e a criança maior.


- Mas e o final feliz da história? Como encontrar os sorrisos no acender das luzes? Onde está saciado o desejo por justiça que alivia e enche de esperanças as crianças, como quando a bruxa má cai do alto do penhasco? Quando é que o príncipe, em seu impecável cavalo branco, vai aparecer para beijar a plebéia e içá-la ao seu cavalo para finalmente galopar com destino ao mais belo castelo do alto da colina mais florida?


Há como comparar a paz estampada nos rostos das crianças na saída do cinema com as expressões dos atormentados telespectadores ao final de mais uma sessão de telejornal?


Talvez a gente até encontre o mesmo sorriso das crianças nas bocarras estúpidas e ambiciosas de alguns dos donos dos órgãos de imprensa, mesmo assim, somente naquele exato momento em que se deparam mais uma atrocidade para financiar as vendas de seus noticiários. Um final feliz na produção em massa, rasa e superficial.

Fato é que, descoberta a curiosidade humana pelas atitudes cruéis dos desajustados e os rios de dinheiro e de poder que esse tipo de imprensa movimenta, a força e a intensidade da divulgação dessas exceções têm promovido uma perigosa distorção.


Cito novamente, como exemplo, a segunda criança jogada pela janela em menos de uma semana. De um fato isolado que se noticia por um milhão de vezes, têm-se a falsa percepção de que todo o mundo está em concurso, que todo mundo espanca, tortura, arremessa, mata. E tudo com direito a requintes dos mais cruéis, surreais, típicos dos vilões das estórias, exaltando os extremos como se regras fossem, porque se tornam comuns.


Daqui a pouco vamos ver pais utilizando a idéia esdrúxula como ameaça, tipo “você viu o que aconteceu com a Isabella, né? Ela teimou com o pai e deu no que deu...” E o comportamento da manada humana vai consolidando tais extremos diante dessas perigosas vertentes, sem os princípios, sem os valores, banalizada, acostumada a uma violência objetalizada, como se normal fosse.


E então, o que fazer? Negar o mundo como fez o personagem de Peter Sellers? Fechar as portas, arrumar as malas? Ir prá onde? Ainda não há loteamentos à venda na lua. Descer do mundo como sugeriu Raul não parece ser menos violento. Conclamar o incorruptível Robespierre e seus amigos para fazer a barba dos que tem as rédeas nas mãos? A guilhotina do ‘grande terror’ já se mostrou capaz de cortes profundos, Danton que o diga. É violência também...


Então, onde mora a violência? No pai da Isabella? Nos vaqueiros? Em Robespierre? Se basta ir além do “eu” para encontrá-la e relacioná-la às ameaças internas, pergunto então: a violência é projetada ou absorvida?

Qual a solução para essa paranóia que aflige o mundo?

Um comentário:

Angela Porto disse...

Seu texto longo e aflitivo, talvez por refletir a aflição que nos toma ao ver de que o homem é capaz, é bem pontual! Perversos somos os que cometemos as atrocidades,os que as sofremos passivamente, os que as assistimos, os que as exibimos, cada qual na sua forma particular de estar na cena! Santa é a indignação de quem tenta escrever tais coisas, na tentativa de fazer algo com a violencia que não seja, nem absorvê-la, nem projetá-la. Talvez criar...