Não sei precisar quanto tempo demorei para chegar ao hospital. Me recordo estar dirigindo, a caminho do trabalho; lembro de cheiro de café entrando pela minha janela, e, me tomando como em flashs, a lembrança de uma grande árvore no canteiro central, de pessoas circulando pelas calçadas, indo e vindo, do brilho do sol colorindo o dia quando meu celular vibrou com um número desconhecido. Era para ser um dia como qualquer outro, e não sei bem o por quê, mas tive receio de atender. Talvez algum sexto-sentido que me dizia para não interromper o que, de tão simples e normal, seria minha última lembrança de felicidade.
Já se passaram cinco anos e eu ainda sonho com uma manhã leve como esta, pelo menos até o momento em que decidi atender o telefone.
- Sra. Susan? – Uma voz meiga, suave, mas ao mesmo tempo preocupada repetiu meu nome por duas vezes.
Lembro do verde ficar cinza, lembro de um silêncio infernal que ainda hoje me consome e me conturba e a voz da policial, ecoando, retumbando como estaca, o nome de meu marido. Certamente minha mente expurgou pelo menos este ápice de minha angústia, porque não há nada que me faça recordar como cheguei ao hospital.
Do que restou em minha memória, lá estava eu correndo desesperada pelo hall principal. A bolsa escorregando pelo ombro, as chaves do carro e o celular nas mãos, e não sei como o salto alto e fino inofensivo à corrida, suportando milagrosamente todo desequilíbrio físico e emocional em que eu me encontrava. E por fim, me lembro de minhas pernas finalmente desistindo de mim, ao ver minhas pequenas com carinhas assustadas e olhos transbordando lágrimas em meio ao que parecia uma multidão de desconhecidos. Novamente um silêncio mortal, pessoas olhando para mim, me contando o pior através expressões de piedade.
Aqueles olhares me apunhalavam até a morte. Me abaixei, abracei minhas meninas, e repentinamente me senti renascendo. Senti o sangue circulando em minhas veias, meu coração batendo abruptamente, e algum sentido em ainda estar ali. Então ouvi alguns passos, alguém se aproximando. O mesmo receio que tive ao ver meu celular me consumiu novamente. Olhei lentamente para trás e me deparei com um médico, estático atrás de nós, me olhando fixamente, ao mesmo tempo em que não conseguia manter o olhar nos meus olhos.
- Sra. Susan, lamento informar, seu marido não resistiu e faleceu.
Foi como se eu tivesse morrido ali também. Minha mãe surgiu, não sei de onde, me abraçou forte e disse que me amava. Me senti amparada, resgatada do pior de meus pesadelos pelo seu acalento. Mas minha mente imediatamente me trouxe de volta à cena. Lembrei que jamais ouviria novamente meu querido John me dizendo essas palavras. Senti uma mistura de desânimo e desespero, uma dor da ausência, um vazio por completo em minha alma, uma saudade imensa, como se o John nunca tivesse sequer existido. Será que eu estava vivendo um pesadelo ou estava acordando de um sonho?
Então uma enfermeira apareceu e perguntou se eu queria ver o John e rispidamente eu disse que não. O que eu queria mesmo era sair correndo dali. Ao mesmo tempo, como se minha razão e emoção estivessem em conflito, pensei que me arrependeria eternamente por não ter ficado com ele ao menos um instante, e então decidi vê-lo.
Seu semblante era de quem dormia em paz, o mesmo que ele estava quando o despertei pela manhã. Não sou muito católica, não vivia minha vida com apegos mais intensos à religião, mas é curioso como diante de um abismo o primeiro a receber a conta é Deus. Foi a ele que dirigi minha revolta. Por quê, meu Deus? O que eu fiz de errado? Com que direito o senhor levou meu marido de mim? Por que esse castigo? E minhas filhas? Tão novas, tão puras, não fizeram nada que justificassem que o senhor tirasse o John da vida delas tão cedo...
Veio então um avassalador sentimento de impotência. Minha mente percorria um interminável labirinto buscando se livrar de qualquer culpa que pudesse ter provocado a morte de John. Lembrei dele saindo às pressas de casa sem tomar o café que usualmente tomávamos juntos. Se eu tivesse insistido para ele ficar, então talvez eu teria o salvado.
Meu Deus, por que eu não estava com ele? Por que você deixou ele ir sem ao menos se despedir? O que ele sentiu? Ele sofreu? Ele era feliz? Se passaram dias, meses, anos e eu segui empurrando minha vida tentando achar motivos para seguir em frente, tentando ao menos encontrar respostas que me fizessem amenizar a dor e a saudade do John. E houve momentos em que fui plena, sendo a mãe que deu forças às filhas, mas em outros eu sequer conseguia me sustentar, e foram minhas filhas que me trouxeram razões para continuar. Mas é fato que aprendi a me envolver com a dor de outros, a confortar quem passava por momentos tão sofridos e adversos como os que passei na falta do John. E entendi que quando me envolvia, me confortava, porque via que não era a única injustiçada, que todos os dias alguém também tinha alguém tomado à força como foi com o John. E enquanto estava ajudando, deixava de procurar respostas que, no fundo, eu sabia que nunca iria encontrar.
O que aprendi? Infelizmente vida e morte são parceiros inseparáveis. Vida e morte não tem coração, que simplesmente resolve parar de bater repentinamente e deixar para os que ficam o fardo de carregar para sempre os sonhos que a vida criou e a morte levou.